Caiu uma cortina de ferro digital

30 anos após o fim da Guerra Fria, o paradigma mudou, a doutrina da globalização também. O caso Huawei é apenas o sinal mais visível de que o pensamento estratégico norte-americano está em mudança rápida

Caiu uma cortina de ferro digital

-"An iron curtain has descended across the Continent."

Winston Churchill, Fulton, 1946
 

A célebre frase do estadista inglês estabelecia a doutrina geoestratégica em que o mundo viveu de 46 a 89 do século passado - um mundo, dois sistemas, dois hemisférios económicos. 

O fim da Cortina de Ferro, em 1989, estabeleceu a doutrina geoestratégica da atual globalização - um único mundo, um único mercado. Sem colocar em causa os benefícios da globalização em termos da produtividade de cada indústria, benefícios para os mercados, empresas e cidadãos das economias desenvolvidas e em desenvolvimento, para o ocidente o trade-off foi a sua superioridade em tecnologia e conhecimento, em troca de permitir que raw materials e produtos de low-tech invadissem os mercados ocidentais. 

No momento em que os países em desenvolvimento, para além de venderem produtos - da segunda revolução industrial - baratos, vendem também a sua própria high-tech a custos mais competitivos, o trade-off termina, a relação win-win desaparece e a maior economia do mundo tem de adaptar a sua estratégia. 

As passadas semanas foram férteis em notícias sobre o ‘ban’ norte-americano: tanto a compra de tecnologia ICT Chinesa, como ‘ban’ na venda de componentes e software norte-americano para a China. 

Fabricantes como a Google apressaram-se a retirar o direito às licenças nas futuras versões do Android aos fabricantes chineses. Depois, veio uma moratória da Casa Branca, de três meses ao seu próprio embargo, possivelmente porque alguém explicou ao Presidente que os processos das cadeias logísticas são demasiado intricados e complexos para sofrerem disrupção imediata. 

Mas essa moratória é só mesmo isso: ganhar tempo. A última declaração conhecida do Presidente Donald Trump é da passada quinta-feira - por isso posterior à moratória – e invulgarmente dura:

- “Huawei is something that’s very dangerous. You look at what they’ve done from a security standpoint, from a military standpoint, it’s very dangerous. So it’s possible that Huawei even would be included in some kind of a trade deal. If we made a deal, I could imagine Huawei being possibly included in some form, some part of a trade deal.”

Declaração do Presidente Donald Trump a um jornalista no final de uma reunião sobre as consequências negativas na agricultura americana das sanções comerciais aos produtos chineses.


Onde ficam os europeus?

Inicialmente, a Europa pode ter cometido três erros na interpretação simplista de uma situação que é, na verdade, mais complexa. 

O primeiro erro é atribuir responsabilidade ao temperamento intempestivo do Presidente norte-americano, assumindo-se uma reação excessiva e imponderada. Na verdade, as bases da mudança de atitude de Washington perante a China já provêm da presidência anterior e são consequência disso, por exemplo, o shift geoestratégico na colocação dos recursos militares com a deslocalização do Atlântico para o Pacífico, iniciada na presidência Obama.

Outro dado importante é que a crescente desconfiança perante o parceiro oriental atravessa, na horizontal, o espetro político norte-americano, podendo ser dos poucos assuntos estratégicos em que Republicanos e Democratas compartilham, basicamente, a mesma opinião. 

O segundo erro é atribuir apenas à tática negocial da guerra comercial sino-americana o bloqueio parcial da tecnologia chinesa. Para a principal potência militar/nuclear, o estado permanente de paranóia face a ameaças externas é um modus vivendi.

A proibição sobre a adoção de tecnologias e produtos provenientes de países não aliados não é nova. Na área do IT, o que ocorreu com a proibição de usar produtos de segurança da Kaspersky por parte das instituições governamentais e de todas as empresas com contratos com o governo, foi uma decisão tomada numa lógica de segurança interna, face a uma potencial ameaça externa, e fez um caminho próprio e não integrado em nenhuma outra lógica geoestratégica.

Por último, a perceção inicial de que nada deste bloqueio aos fabricantes chineses de ICT teria repercussões na Europa mostrou-se uma premissa totalmente errada. Os aliados mais próximos, como o Reino Unido, procuram a ‘quadratura do círculo’, excluindo a Huawei da parte sensível das redes 5G, mas mantendo as portas semiabertas para algumas oportunidades (menos sensíveis) nas futuras redes, para o parceiro comercial asiático. 

Outros países com excedente na balança comercial com a China - caso da Alemanha e de alguns países nórdicos -, tomam uma posição mais independente face à pressão norte-americana, porque têm mais a perder no peso das exportações. No entanto, avançam com o que designam de “procedimentos de mitigação de riscos” face à adoção das tecnologias, o que corresponde de alguma forma ao reconhecimento do risco em si.

Na prática, os políticos europeus podem nem precisar de decidir nada: o simples condicionamento das exportações de produtos americanos para a China, dentro de três meses, já causa o grau suficiente de incerteza junto dos decisores empresariais europeus para que a implementação da Huawei, sobretudo nas redes 5G, sofra um retrocesso.


As Cortinas de Ferro Digitais desceram para ficar

A ideia otimista de um "playground" global, que animou o setor tecnológico nas últimas décadas, está na verdade comprometido. 

Os blocos vão tender para um isolamento, ou pelo menos para uma relação condicionada. A Rússia está a montar a sua mega IntraNet, a China na verdade nunca abandonou a sua e o Ocidente está, por seu lado, a erguer novos muros na tecnologia. 

A globalização parece agora muito menos interessante para os Estados Unidos. A confiança necessária nas cadeias de fornecimento globais está comprometida, ninguém sabe na verdade quem vai poder vender para quem dentro de alguns meses. Deslocalizar centros de produção para dentro do próprio Bloco é incrivelmente moroso e caro. 

Caso a China saísse das cadeias de fornecimento, provavelmente no curto prazo muito poucos fabricantes ocidentais poderiam manter a sua oferta de produtos IT. 

Neste momento, na indústria mundial, todos os planos “B” e “C” saíram das gavetas para cima das mesas. Os chineses vão acelerar o desenvolvimento do seus próprios softwares e tecnologia de microprocessadores, enquanto nos Estados Unidos se procuram alternativas para as cadeias de fornecimento, e alternativas para eventualidade de um grande mercado de tecnologia ficar interdito. 

Num cenário impulsionado por uma lógica geoestratégica defensiva, economicamente só há perdedores, e por isso a moderação e razoabilidade acabará por vingar. O condicionamento na venda de chips e software americano será provavelmente só parcial, e a interdição na compra de produtos Huawei poderá ficar apenas para os setores de atividade estrategicamente sensíveis. 

No entanto, certo é que o ‘business as usual’ no IT nunca mais será o mesmo. Cada bloco trabalhará, por segurança e contingência, para ser tecnológica e logisticamente mais autónomo, o desenvolvimento será mais lento, o preço da tecnologia provavelmente sofrerá, e o âmbito de atuação das grandes empresas será provavelmente mais regional. 

A Cortina de Ferro Digital veio para ficar.

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