Atualmente, ser líder já não é só gerir pessoas; é perceber máquinas sem esquecer a ética, inovar com objetivos e usar a transformação digital para mudar a cultura e o propósito. A inteligência artificial generativa e a automação vieram para alterar as regras do jogo empresarial, desde os processos às equipas. Numa era em que cada decisão é medida, a liderança passou a assumir responsabilidades num território onde a tecnologia e a Humanidade se cruzam de forma inevitável
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O dia-a-dia de quem lidera entrou numa nova era, com a digitalização e a Inteligência Artificial (IA) generativa a tornarem as organizações mais rápidas e eficientes, mas também a exporem fragilidades no modelo de liderança tradicional. De acordo com a Gartner, apenas 48% das iniciativas digitais atingem os resultados esperados, sinal de que a tecnologia avança mais depressa do que a capacidade de liderança que a deve orientar. Da gestão de pessoas à definição de estratégias, multiplicam-se as variáveis que exigem novas competências e uma força de trabalho capaz de colaborar com sistemas inteligentes. A transformação digital deixou de ser apenas um tema estratégico para se tornar também uma questão ética e jurídica.
Tudo isto converge num ponto inevitável – a liderança está a ser reprogramada. Emanuel Agostinho, Lead Strategy & Consulting da Accenture, encara esta evolução como uma libertação, que “dá tempo para pensar estrategicamente e definir as regras do jogo”. Rui Gonçalves, Partner e Head of Technology Consulting da KPMG Portugal, defende que está a ser reconfigurada “em três dimensões: mentalidade, competências e ferramentas”. Já Sérgio Viana, Managing Partner da Xpand IT, considera que a reprogramação é positiva, desde que o líder continue a garantir que as decisões assentam em informação correta e fiável. Transformação digital vs. adoção de ferramentasMuitas empresas confundem transformação digital com adoção de ferramentas, e é aí que costumam falhar, defende Sérgio Viana. Aponta que “uma empresa pode adotar várias ferramentas e, na realidade, não estar a fazer qualquer transformação digital efetiva”, sendo que a mudança “implica uma alteração na forma como as empresas funcionam e utilizam tecnologia para servir melhor os seus objetivos e clientes”. Essa visão é partilhada por Emanuel Agostinho, que sublinha o erro recorrente de tratar as ferramentas como um fim em si mesmas. O Lead Strategy & Consulting da Accenture considera que as organizações mais avançadas na adoção de inteligência artificial são as que constroem primeiro um “núcleo digital robusto” – uma infraestrutura de dados, cloud, e plataformas interoperáveis – antes de dispersar iniciativas isoladas. Sem esse alicerce, diz, os projetos “ficam isolados e têm dificuldades para escalar”.
Nas palavras de Rui Gonçalves, a “transformação digital é uma reformulação estratégica” e, por sua vez, “uma jornada que requer adaptação contínua, compromisso da liderança e um roadmap claro” que envolve repensar modelos de negócio, operações e cultura. O papel das chefias na nova era de trabalhoPor se tratar de um processo longo e completo, a transformação digital exige clareza nos objetivos traçados. O desafio passa a ser estrutural e, aqui, o papel das chefias ganha destaque. Sérgio Viana considera que “a mudança tem de ser apoiada pela liderança das empresas”. No entanto, segundo Rui Gonçalves, muitos líderes ainda não alinham estratégia e cultura com tecnologia, limitando-se a iniciativas táticas. Na sua perspetiva, é essencial “definir uma visão clara e comunicá-la continuamente”, patrocinar a mudança cultural e criar métricas que reflitam a adoção digital. Com base no “CEO Outlook 2025” da KPMG, o responsável destaca que 26% dos CEO valorizam a agilidade e rapidez nas decisões, 24% sublinham a transparência na comunicação e 23% consideram essencial uma gestão ativa de riscos, nomeadamente em áreas como cibersegurança, ética da IA e ESG. O estudo mostra ainda que 71% dos líderes estão a investir fortemente em IA e talento, embora nem todos alinhem esses esforços com a transformação cultural necessária. Um bom líder, na visão de Emanuel Agostinho, é aquele que está “mais próximo da transformação – não apenas a incentivá-la, mas a vivê-la no dia-a-dia”. A experiência, afirma, mostra que as organizações mais bem-sucedidas são aquelas em que o C-suite participa ativamente no processo, e não apenas o supervisiona. Numa era em que a velocidade das decisões é crítica, o responsável acredita que a liderança deve ser capaz de equilibrar risco e rapidez, “sabendo quando confiar em modelos e quando exigir intervenção humana”. O impacto da inteligência artificial
A esta altura, o impacto da IA nas equipas está a reconfigurar o conceito de liderança, com a IA generativa a “libertar tempo das equipas para tarefas de maior valor”. De acordo com Emanuel Agostinho, “as pessoas continuam essenciais na definição do contexto, na tomada de decisão e na relação humana”. O foco, diz, passa por gerir a colaboração entre humanos e máquinas e medir o impacto da tecnologia com base em resultados. O futuro, para Sérgio Viana, será de equipas aumentadas por tecnologia, onde os líderes têm de procurar compreender “como liderar estas equipas mistas, tirando partido do melhor que cada elemento tem para oferecer”. Rui Gonçalves acrescenta que os gestores estão a transformar-se em “orquestradores”, liderando ecossistemas híbridos de pessoas e IA. Esta nova realidade exige requalificação contínua, políticas claras de ética e privacidade e uma comunicação transparente sobre o papel humano. Entre a automação e o humanismo, o equilíbrio é cada vez mais frágil e, na Xpand IT, acredita-se que “a automação, quando bem feita, liberta as pessoas de tarefas repetitivas e permite focar nas que dependem de competências humanas”. No entanto, Rui Gonçalves alerta para o risco contrário: a desumanização do trabalho, caso a automação não seja acompanhada por uma gestão cultural atenta. “A cultura deve ser uma prioridade estratégica”, afirma, defendendo políticas de governação ética e investimento em competências como empatia, colaboração e liderança.
Alexandra Andrade, Country Manager da Adecco Portugal, afirma que “já não é o futuro, é o presente”. Trabalhar lado a lado com agentes de IA representa uma nova forma de inteligência coletiva e, por isso, quem domina ferramentas copilot, entende prompts e supervisiona resultados “com espírito crítico, multiplica o seu impacto”. A literacia em IA, diz, “é o novo saber ler e escrever da era digital”; no entanto, a transformação será sempre humana, uma vez que “a inteligência artificial pode amplificar o potencial humano, mas é o ser humano que continuará a dar-lhe direção, ética e alma”. Recursos humanos e evolução das competênciasA par da liderança, importa explorar de que modo a transformação digital está a reconfigurar o mercado de trabalho e a redefinir o conceito de talento. A Country Manager da Adecco Portugal descreve o momento como “uma revolução silenciosa – uma transformação que não é apenas tecnológica, é profundamente humana”. No centro dessa mudança, afirma continua a estar “aquilo que nenhuma máquina poderá replicar: o nosso propósito, a nossa empatia e a nossa capacidade de criar sentido”. Neste momento, as empresas procuram “construtores de impacto”, profissionais que dominam IA generativa, machine learning, dados e automação inteligente, mas que saibam transformar tecnologia em valor, “para o negócio e para as pessoas”. Segundo a responsável, “o talento do futuro é híbrido: combina o raciocínio lógico de um engenheiro com a sensibilidade de um líder”. São perfis que unem pensamento estratégico e empatia, capazes de compreender tanto métricas como emoções. Num mundo cada vez mais automatizado, “o diferencial humano é o que realmente faz a diferença”, e competências como liderança, comunicação e capacidade de inspirar equipas tornaram-se simultaneamente as mais procuradas e as menos comuns. Enquanto, diz, “a inovação corre e a aprendizagem tropeça”, é fundamental encurtar essa distância e reinventar a forma de aprender. As empresas mais avançadas estão a criar “academias internas de IA, com programas curtos, práticos e centrados em desafios reais”, com o objetivo de “aprender ‘fazendo’ – e fazer ‘aprendendo’”. A ideia passa por colocar a aprendizagem “no centro da estratégia e da performance”, porque “o futuro não será de quem sabe mais, mas de quem aprende mais depressa, e com propósito”. Implicações jurídicas da nova forma de trabalho: decisões com IA ou pela IA
A transformação digital trouxe novos dilemas jurídicos para as empresas, sobretudo com a incorporação de sistemas de IA nos processos de decisão. A questão da responsabilidade está no centro do debate: quando uma decisão automatizada dá errado, quem responde pela mesma? Para Daniel Reis, Sócio de IPT da DLA Piper, “a responsabilidade é da pessoa (singular ou empresa) que toma a decisão, utilizando um sistema de IA ou decisões automatizadas” e dá o exemplo de um banco que ao “recusar conceder um crédito com base numa decisão automatizada, a responsabilidade será do banco. Em condições normais, nem o gestor nem o programador serão responsáveis”. Martim Bouza Serrano, Sócio da área de Tecnologias, Media e Telecomunicações da CCA Law Firm, dá conta da complexidade do tema, já que “a responsabilidade depende sempre do contexto e do grau de autonomia do sistema. Na prática, o problema raramente é da IA, mas sim de quem a concebe, implementa, supervisiona ou decide delegar-lhe a capacidade de decisão”. O especialista alerta para a “difusão da responsabilidade” e lembra que “a cadeia de decisão torna-se opaca, e os tribunais vão ter de analisar e identificar quem responde”. A fronteira entre decisões tomada com IA e decisões tomadas pela IA é um ponto de divergência. Há quem desvalorize a distinção, como é o caso de Daniel Reis, que afirma que “do ponto de vista jurídico não é relevante uma decisão tomada pela IA, a decisão é sempre tomada por quem está a utilizar IA”. Já Martim Bouza Serrano considera que a diferença é importante porque “uma decisão com IA significa que o humano continua no centro”, isto é, “a IA apoia, mas não substitui o juízo humano”. No entanto, aponta, “uma decisão pela IA implica delegação total ou quase total da decisão, o que levanta questões de responsabilidade, transparência e até de validade jurídica”. Regulamentação como pilar da IAA velocidade do progresso tecnológico revela-se um desafio para o enquadramento jurídico atual e Daniel Reis considera que “a tecnologia evolui sempre mais rápido do que a regulação” e isso “não é um fenómeno novo”. Por isso, as empresas já estão habituadas a viver com incerteza e nada disto é “muito grave”. O essencial, defende Martim Bouza Serrano, “é garantir princípios sólidos e mecanismos de adaptação”. A regulação, aponta, deve gerar confiança “sem travar a inovação”. Este tópico traz algumas nuances porque “o legislador chega sempre depois, muito depois de a inovação ter já transformado práticas e modelos de negócio e, por norma, com regras para uma realidade que, entretanto, também já se alterou”. Nas palavras do especialista, “a principal diferença é a escala e a velocidade com que a IA se está a entranhar em todos os setores, reduzindo drasticamente a margem de erro das empresas”.
Os riscos legais começam muito antes de o algoritmo ser ativado e Daniel Reis nota que “o risco está na utilização de IA”. Por isso, defende que “a aquisição ou desenvolvimento de soluções que utilizem IA deve ter presente as obrigações legais aplicáveis” e que compreender o impacto da sua utilização deve ser “encarado como um processo de negócio a introduzir em todas as empresas que pretendam beneficiar da IA”. Martim Bouza Serrano acrescenta que o perigo surge “na definição do propósito e na recolha dos dados”. É aí que “se decidem as bases do tratamento, a proporcionalidade, a transparência e o eventual viés”. “O erro mais comum continua a ser a falta de antecipação e preparação das empresas para as constantes alterações legislativas”, indica Martim Bouza Serrano, que critica a tendência para encarar o regulamento “como mais um conjunto de requisitos burocráticos, que não apresenta qualquer vantagem para o dia-a-dia do negócio”. A par disso, Daniel Reis, vê “a aquisição de soluções sem se analisar ou sequer pensar nos riscos que podem daí resultar” como principal problema. Com a entrada em vigor do AI Act e de outros regulamentos europeus, as empresas estão a ser obrigadas a reverem contratos, políticas de privacidade e cláusulas de propriedade intelectual. “Estamos a assistir a uma revisão profunda de contratos tecnológicos, sobretudo nas cláusulas de responsabilidade, confidencialidade, propriedade de dados e outputs gerados”, reforça Martim Bouza Serrano. |