Nestes tempos, em que se fala de agentes e de robots como se falava antes de PC ou de Internet, com a certeza de uma inevitável presença futura, liderar já não é um ato de comando: é um exercício de tradução
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As organizações operam dentro de sistemas de decisão que aprendem, preveem e recomendam. A Inteligência Artificial (IA) deixou de ser uma ferramenta para se tornar um ambiente. E o líder é, antes de mais, alguém que procura manter a lucidez organizacional dentro desse ambiente. Durante décadas, associámos liderança a intuição, a visão e a experiência acumulada. Nada disso desapareceu, mas perdeu exclusividade. A autoridade humana passou a partilhar o espaço de decisão com a inferência algorítmica. Quem gere organizações tem hoje de compreender o que significa decidir quando se multiplicam os prismas sobre os quais a realidade é interpretada. Um erro recorrente é confundirmos automatização com progresso. A eficiência é uma virtude instrumental, não moral. A IA é exímia a replicar padrões, mas desastrosa fora das balizas de treino — daí as bem conhecidas alucinações. Liderar na era da IA é proteger o espaço da interpretação: o território onde os dados terminam e o sentido começa. A questão é, no fundo, de poder. As organizações foram desenhadas como hierarquias humanas, não como ecossistemas híbridos homem-máquina. Quando uma entidade artificial se transmuta em colaborador, a autoridade muda de natureza. O dirigente deixa de ser a origem da decisão para se tornar o arquiteto de um diálogo entre inteligências — uma humana, outra computacional. E essa mediação exige uma qualidade que as teorias de gestão raramente contemplam: humildade cognitiva. Porque a IA não é neutra. Cada modelo transporta os enviesamentos dos dados e das intenções que o moldaram, reproduzindo o passado com a aparência de objetividade. A liderança responsável é a que torna visível o que o sistema tende a naturalizar. É a que promove culturas onde a dúvida não é fraqueza, mas método. Porque as máquinas aprendem com o que foi; só os humanos conseguem contestá-lo. Ao mesmo tempo, a delegação do raciocínio às máquinas revela o vazio de propósito. Se a organização sabe calcular, resta-lhe decidir porquê. É aqui que a função diretiva volta a ser humana — não pela emoção, mas pela capacidade de deliberar com consciência. O novo líder é menos gestor de resultados e mais curador de sentido. A sua competência não está em dominar a tecnologia, mas em situá-la. Não em resistir à IA, mas em impedir que a IA se torne o critério do que é real. Liderar em tempos de inteligência artificial é isto: sustentar o humano quando o pensamento deixa de ser exclusivo da humanidade. |