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“É fundamental a quebra de silos na administração pública”

Interoperabilidade e experiência do utilizador são determinantes na relação do cidadão com o setor público. Mas, para concretizar este objetivo, é também necessário reforçar as competências dos recursos humanos e garantir um serviço de excelência, eficiente, que melhore a produtividade de cidadãos e empresas. A ‘bazuca’ está aí para ajudar

“É fundamental a quebra de silos na administração pública”

“Uma administração pública mais moderna e digital é um pilar fundamental para suportar uma economia mais próspera e resiliente”, defende Sofia Marta, Vice-presidente responsável pela área de Saúde e Administração Pública da Accenture Portugal. Na opinião da consultora, se o país conseguir ter um setor público moderno e digital, que trata o cidadão como cliente, e melhorar os índices de eficiência para atender mais e melhor, conseguirá, em simultâneo, ter um setor empresarial privado mais competitivo. No fundo, acredita, “a meta deverá passar por transformar Portugal num país onde a Administração Pública é eficiente e presta um serviço de excelência, desburocratizada e desmaterializada, que melhora a produtividade dos cidadãos e das empresas, e que contribui para atração de investimento estrangeiro e assegura a estabilidade das políticas fiscais”. A opinião é partilhada por David Faustino, diretor executivo da Nexcellence, empresa do universo Glintt, focada na transformação digital que, acrescenta, “o futuro do país depende de o Estado conseguir criar condições para que a economia seja mais dinâmica”.

Contudo, para que esta ambição possa concretizar- se, diz Gabriel Coimbra, diretor-geral da IDC Portugal, é preciso ultrapassar alguns desafios, nomeadamente, a questão da interoperabilidade dos vários serviços públicos, que hoje ainda não existe. “Embora se estejam a começar a dar alguns passos é necessário acelerar muito no que diz respeito a esta questão”. Sofia Marta reforça: “é fundamental a quebra de silos e a promoção da interoperabilidade entre as várias áreas governativas”. Para a responsável da Accenture, existem bons exemplos, “como as Finanças e a Modernização Administrativa, com iniciativas como o cartão do cidadão, que temos de multiplicar”. Mas, no geral, admite, “os processos internos de funcionamento das organizações públicas têm de ser otimizados, digitalizados e automatizados”.

Apesar de concordar que há muito a fazer no que se refere à interoperabilidade entre sistemas públicos, David Faustino reforça o trabalho da Nexcellence nesta área. A empresa que dirige tem desenvolvido “outros projetos relevantes na vertente da interoperabilidade”, nos quais tem trabalhado em conjunto com alguns organismos do setor público. “Fazemo-lo há algum tempo em áreas como plataformas de acesso a candidaturas e apoios, e em sistemas internos de um conjunto de entidades relevantes”.

Combater a falta de literacia é prioritário

Mas há, segundo os especialistas contactados pela IT Insight, outros desafios que é essencial ultrapassar para que o setor público complete a sua transformação digital. Entre eles destaca- se a baixa literacia digital e a falta de qualificações da população. Segundo o índice DESI (Digital Economy and Society Index), desenvolvido pela Comissão Europeia, em 2019, 22% da população portuguesa não tinha qualquer acesso a meios digitais. Com a pandemia, esta percentagem caiu para 18%, como revela Vanda Jesus, diretora executiva da Unidade de Missão Portugal Digital, em entrevista à IT Insight. “Mas queremos fazer muito mais nos próximos anos”.

“Portugal é o terceiro país da União Europeia onde mais pessoas nunca usaram Internet”, completa Sofia Marta, recorrendo aos dados do Eurostat. “E estamos a falar de um quinto da população”, reforça. A responsável reconhece o esforço que o país tem feito para modernizar e digitalizar o setor público, mas, alerta, “não nos podemos esquecer que esses serviços são dirigidos à população, e que a mesma tem que ter competências digitais”. Gabriel Coimbra destaca também este desafio como prioritário, e recorda que a adoção dos serviços online por parte da população, quer no público, quer no privado, é mais baixa do que a média europeia. “Esses são dois fatores estruturantes na nossa sociedade e economia, e em que nos encontramos bastante atrás da média europeia”, afirma. Para o responsável da IDC Portugal, o fraco desempenho nestes critérios tem um efeito no desenvolvimento da sociedade e afeta a utilização dos serviços públicos.

Olhando para um ‘copo mais cheio’, David Faustino recorda que Portugal está, apesar de tudo, numa posição interessante na digitalização do setor público, a nível mundial. De acordo com um estudo da OCDE – o Digital Government Index –, que cita, Portugal ficou classificado em nono lugar na digitalização do Governo, tendo ficado à frente de países como a França, a Holanda e a Noruega que são países com economias muito competitivas. Neste mesmo estudo, reforça o responsável da Nexcellence, a nível europeu, Portugal só ficou atrás de Espanha e da Dinamarca. Já segundo o E-Government Survey de 2020, realizado pelas Nações Unidas e divulgado recentemente, Portugal ocupa a 35.ª posição ao nível de Governo digitalizado, “o que acaba por ser uma posição também muito interessante, especialmente se considerarmos que, segundo o Banco Mundial, Portugal se encontra na 49.ª posição no ranking do PIB per capita, portanto, 14 posições acima daquilo que seria a nossa criação de valor”, salienta David Faustino.

Os últimos 18 meses em pandemia vieram demonstrar a importância dos meios digitais e acelerar a urgência de uma transformação digital transversal a toda a sociedade. Hoje, diz Vanda Jesus, “quando pensamos num projeto de transformação digital em qualquer organismo, em qualquer entidade, que não comece com uma identificação do estado de capacitação do nosso território, já não estamos a ir por um bom caminho”. É por isso que, segundo a responsável do Portugal Digital, a capacitação é um eixo prioritário no plano de ação deste programa do Governo, estando um conjunto de projetos em curso.

Relativamente ao tema da capacitação, afirma Sofia Marta, “parece-nos que o Governo está a apostar, e bem, na área de formação de pessoas, através de programas como por exemplo o ‘Eu sou Digital’, que prevê que mentores (pessoas comuns, mas com algum nível de literacia digital) possam ser eles próprios os formadores da restante população”. Este programa, e outros, estão a ser pensados num trabalho conjunto entre o Estado, a comunidade social, institucional e empresarial, e têm como objetivo aproximar os cidadãos da utilização de serviços online. “E esta é, sem dúvida, uma prioridade”, acrescenta.

Experiência do utilizador ainda não satisfaz

Utilização difícil e pouco intuitiva são algumas das falhas apontadas frequentemente aos serviços digitais do setor público. Aquilo que deviam ser facilitadores da relação entre cidadão e Estado acabam, muitas vezes, por dificultar o processo e por fazer desistir muitos utilizadores. “Temos de fazer um trabalho muito grande naquilo que é a vertente de utente do cidadão”, diz Gabriel Coimbra. Ou seja, na opinião do responsável da IDC, há muitos serviços disponíveis, mas a experiência e a sua utilização ainda é difícil. “Há uma série de desafios para os cidadãos que querem utilizar os serviços, mas depois não os encontram ou não conseguem fazer uma boa utilização porque falta aquilo a que chamamos o user experience e o foco no utilizador”, explica. Uma opinião partilhada por Sofia Marta. “Não é suficiente disponibilizar um novo serviço. As pessoas precisam de saber que existe, como utilizá-lo, entender a linguagem e as opções disponíveis. A facilidade de acesso e experiência de utilização são decisivos”. Para a responsável da Accenture, os cidadãos querem passar de um serviço prestado num canal fixo para um canal à sua escolha, que lhes permita selecionar o mais adequado à interação pretendida, incluindo o self-service. “Querem um serviço simples, proativo e focado no resultado pretendido, otimizando a utilização da informação que o Governo já detém, evitando redundâncias, morosidade e burocracia desnecessária”, acrescenta.

A par com a interoperabilidade dos sistemas e com o combate à iliteracia digital, o diretor-geral acredita que este é outro grande desafio da Administração Pública para os próximos anos. “Não deveria haver nenhum serviço público que não devesse ser possível de ser feito de forma digital”, complementa Sofia Marta.

Portugal é, demonstram estudos como o DESI, um dos países da Europa que disponibiliza mais serviços públicos digitais. No entanto, apesar do 13.º lugar que ocupa, no conjunto dos 27 países da União Europeia, “temos um longo caminho pela frente e muitos desafios por enfrentar”, diz a vice-presidente para o setor público na Accenture. Um dos exemplos do que há a fazer passa por apostar numa vaga de inovação na forma como se disponibilizam os serviços aos cidadãos. “É essencial potenciar as novas tecnologias e os canais digitais que permitam desburocratizar e desmaterializar a maior parte da documentação neste momento necessária”, explica.

De acordo com o mais recente estudo da Accenture sobre Consumidores Digitais, 85% dos cidadãos esperam o mesmo ou um mais elevado nível de qualidade dos serviços governamentais, quando comparado com o das organizações comerciais. “As entidades públicas precisam de ser capazes de proporcionar uma experiência simples, conectada (com o princípio do “once only”) e realmente impactante e eficaz”, acredita Sofia Marta.

Adaptação às necessidades e exigências dos cidadãos e uma maior divulgação de serviços que já existem são, na opinião de David Faustino, falhas que a Administração Pública terá que corrigir para que os níveis de utilização e a satisfação possam aumentar. “Diria que o setor público tem, tal como o privado, que adaptar-se”. O responsável da Nexcellence acredita que o setor público tem agora uma oportunidade relevante de divulgar, de forma mais dinâmica e proativa, os serviços que foram criados e que estão disponíveis. “Acho que os canais digitais são por natureza muito interessantes, sobretudo para as camadas mais jovens, uma vez que essas pessoas já comunicam bastante pelos canais digitais”. Contudo, admite, há ainda muito trabalho a fazer porque “há muitos serviços disponíveis, mas as pessoas ainda não os conhecem muito bem”.

Na perspetiva da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), esta adaptação acelerou pelas circunstâncias impostas pela pandemia. “Tivemos que acelerar adoção de medidas, muitas já identificadas ou mesmo desenvolvidas, que possibilitassem aos cidadãos e às empresas manter o seu relacionamento com o Estado, tanto no cumprimento de obrigações como no acesso a benefícios e apoios”, explica a presidente, Fátima Madureira. Garantir que, não obstante as circunstâncias, os cidadãos e as empresas tivessem ao seu dispor canais para a realização de serviços foi, para a responsável, o maior desafio. “O trabalho desenvolvido em eportugal.gov.pt ou nas linhas de apoio ao Cidadão e Empresa são o exemplo mais visível”, diz. Mas outros houve, menos visíveis, mas igualmente relevantes, desde os desenvolvimentos feitos ao nível dos sistemas, e que garantem a interoperabilidade, a usabilidade e a acessibilidade, à com cidadãos e empresas. “A interoperabilidade, a partilha e reutilização de dados, a identificação digital e participação de todos é uma realidade”. A presidente da AMA acredita que, bem explorados, estes pilares têm o poder de, gradualmente, tornar o Estado mais ágil, próximo e capaz de mudar o paradigma. “Simplificar serviços significa eliminar as redundâncias nas interações do Estado com os cidadãos e empresas”.

Bazuca a oportunidade de uma vida

A falta de capacidade de investimento, tanta vezes dada como argumento, deixa agora de fazer sentido com a chegada do envelope financeiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “A tão falada ‘bazuca’ europeia constitui, de facto, uma oportunidade única e, provavelmente, não repetível na próxima década, para modernizar a nossa Administração Pública, de uma forma transversal e em particular em algumas áreas chave como a Justiça, a Segurança Social e a Saúde”, acredita Sofia Marta. “Não tenho dúvidas de que a bazuca e o novo quadro comunitário, não só o PRR, vão ser fundamentais para a transformação da nossa sociedade e da nossa economia”, complementa Gabriel Coimbra que, acrescenta: “quer o setor privado, quer o setor público, têm de ser capazes de ter um maior proveito e criar o maior valor possível a partir desses fundos”.

O responsável da IDC Portugal recorda que o valor disponível no PRR é “quase um orçamento 2.0 da administração pública”, o que permitirá duplicar o investimento por parte do Estado e ser, em simultâneo, essencial e crítico para essa transformação mais estruturada dos serviços públicos digitais. “Acredito que serão muitos desafios para executar porque é muito dinheiro, serão necessários muitos recursos, muitas pessoas com muitas competências, mas é uma oportunidade enorme”.

Já David Faustino defende que será possível fazer hoje muito do que durante um conjunto de anos não foi. “Estivemos muitos anos em crise e os orçamentos do Governo para esta área foram cortados”. Para o responsável da Nexcellence, Portugal deve aproveitar o facto de receber uma verba de 22%, destinada à transformação digital - a média europeia é de apenas 12% -, para recuperar o atraso em algumas áreas. Noutras, em que o país está acima ou em linha com a média europeia, “é uma oportunidade única para conseguirmos dar um salto ainda maior, e fazer com que aquilo que é hoje uma situação em que Portugal está acima da média, nos possa colocar no topo”, reforça Gabriel Coimbra. Na área da Modernização Administrativa, grande parte dos projetos em curso beneficiarão agora de uma maior dinâmica e rapidez de concretização, com a ajuda do PRR. Segundo Fátima Madureira, são 16 projetos estruturantes, em grande medida tecnológicos, e que passam pelo atendimento e suporte, em qualquer canal, nomeadamente por via do reforço do ponto único de acesso, do desenho de um modelo comum e uniforme de serviços digitais e presenciais; do desenvolvimento de mecanismos de controlo, confiança e auditabilidade no acesso a dados; na melhoria e ampliação das soluções de identidade digital e no reforço das plataformas transversais, entre outros. “Estes projetos traduzem-se em melhorias concretas no nosso dia a dia, como o desenvolvimento e um único portal de serviços, uma linha única, soluções integradas para agendamentos e, cada vez mais e melhores, dados abertos ao serviço da sociedade”, exemplifica a presidente da AMA.

O objetivo da agência passa pelo desenvolvimento e implementação de soluções inovadoras, como o Programa SIMPLEX, as Lojas e Espaços Cidadão, entre outros projetos, sempre “alinhados com a adoção de mecanismos e ferramentas digitais para dinamizar a oferta através de diferentes canais e promover a inovação pública”. São exemplos a renovação online do Cartão de Cidadão, Alteração de Morada, Licenciamento Zero, Receitas Médicas Digitais, a criação e crescente ampliação de serviços através do Portal ePortugal, a Chave Móvel Digital, a app id.gov.pt, entre outros serviços, como destaca a responsável.

O eterno problema do talento

A escassez de recursos humanos especializados na área das TIC não é novidade para ninguém nem, tão pouco, um problema apenas nacional. Mas se as empresas privadas sofrem com o reduzido número de profissionais técnicos disponíveis, o problema agrava-se quando olhamos para o setor público. “Não nos podemos esquecer também que devido a estes anos todos de redução de orçamentos, entidades de grande responsabilidade em Portugal estão verdadeiramente subdimensionadas em termos de capacidade humana”, afirma David Faustino. E este é, para aquele responsável, outro tema relevante “que vai ser um desafio muito importante na implementação deste PRR”. O foco tem estado em manter a máquina a funcionar, mas agora, aponta, é preciso pensar no futuro. “Vai haver muito dinheiro, mas vai ser difícil ter capacidade humana para investi-lo de forma correta”.

Este é também um alerta deixado por Gabriel Coimbra. “Faltam recursos, talento e equipas para conseguirem fazer toda essa transformação em tão pouco tempo”. O responsável da IDC recorda que a Administração Pública tem um desafio adicional a este nível pois tem limitações orçamentais e, até, de condições de modelos de trabalho que sejam adequados aos perfis necessários. “Os organismos da Administração Pública devem conseguir criar condições para atrair e reter talento, assim como trabalhar mais ainda com o setor privado e as empresas tecnológicas”, recomenda. “Não é apenas uma questão de acesso aos fundos”, acrescenta Sofia Marta. Na opinião da responsável da Accenture, a Administração Pública, e todas as organizações, precisam de ajuda para se transformar, reinventar, e capacitar os seus colaboradores. “Esta nova realidade é caraterizada pela mudança, pela incerteza e volatilidade. Os atuais modelos de negócio já não garantem o êxito no futuro, por isso há que transformá-los, e o caminho da transição digital tem de ser feito de forma consciente e segura”.

Olhando para as soluções, David Faustino acredita que, entre outras, o trabalho remoto na Administração Pública possa ser uma resposta à escassez de talentos, uma vez que abre portas a contratações fora dos grandes centros populacionais. Durante a pandemia, recorda, o Estado conseguiu adaptar-se, com algum custo, ao trabalho remoto e conseguiu colocar as pessoas a trabalhar a partir de casa. “Mas acho que uma medida relevante era continuar nesta lógica e, eventualmente, o Estado continuar a contratar pessoas fora das grandes cidades”. Com esta estratégia seria possível reter pessoas em zonas mais remotas e do interior e dar-lhes boas condições de vida e de trabalho. “Julgo que seria uma boa oportunidade para o país e, particularmente, para a máquina da Administração Pública”, salienta.

Já para Fátima Madureira, a maior das prioridades continua a ser uma Administração Pública moderna, capaz de responder às necessidades dos cidadãos e das empresas, sem demoras e sem pedidos de informação desnecessários. Resumindo, conclui, “uma Administração Pública ligada, moderna, tecnológica e amiga”.

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