“O PRR será o catalisador da mudança e uma oportunidade a não perder”

Num mundo cada vez mais digital, cerca de um quinto da população nacional não tem acesso a meios digitais. Capacitação e formação são temas críticos para que o país possa tornar-me mais competitivo e atrair mais investimento estrangeiro. Vanda Jesus, diretora executiva do Portugal Digital, acredita que a ‘bazuca’ será o impulso que falta para a transformação em curso

“O PRR será o catalisador da mudança e uma oportunidade a não perder”

Contas feitas, aproximadamente dois milhões de portugueses não têm acesso a meios digitais nem conhecimento para interagir, por exemplo, com serviços públicos. Este número baixou ligeiramente ao longo dos 18 meses de pandemia, mas está longe dos objetivos definidos pela Unidade de Missão Portugal Digital, liderado por Vanda Jesus, que, em cinco anos, quer chegar a valores residuais. À IT Insight, a diretora executiva explicou quais os desafios e prioridades que norteiam os vários programas que coordena, e revelou que Portugal tem todas as caraterísticas para estar no pelotão da frente dos países mais digitais da Europa.

Um ano depois de ter abraçado este desafio que balanço faz?

O plano de ação do Portugal Digital foi aprovado a 5 de março de 2020, mas, devido à pandemia, a criação da estrutura de missão só aconteceu em abril, tendo eu tomado posse no início de junho. Na equipa somos apenas oito pessoas, comigo nove, a trabalhar a partir de 1 de setembro que foi, só isso, um tempo recorde. Portanto, o meu sentimento é que, em tempo digital, passaram cinco anos também para nós, porque a ambição do plano já era muito grande, mas com a pandemia a aceleração do digital foi, de facto, enorme.

E foi enorme porque não mudámos o plano, só ampliámos. Ou seja, acelerámos a execução do que estava desenhado e, das 12 medidas emblemáticas que tínhamos, passámos para 28 porque a aceleração e a necessidade de ampliar e de perceber outras vertentes assim o exigiram. Assim, aquilo que achávamos que deveria ser ambição do mandato passou, na realidade, a ser a ambição destes dois anos.

O que permite agora fazer mais nos próximos anos.

Estamos, neste momento, a preparar a atualização do plano de ação para a transição digital para as medidas ampliadas com o reforço do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que, acredito, será de facto um grande catalisador desta mudança e desta transformação, e uma oportunidade que não podemos perder.

E no que se refere ao balanço pessoal desta missão?

É de grande satisfação por tudo o que já conseguimos atingir em termos concretos. Mas, de tudo isto, se há uma coisa que realço – e é a segunda vez que tomo esta decisão de abraçar uma missão -, é que é realmente agradável perceber que há pessoas fantásticas na administração pública que precisam de ajuda para criar pontes, para poderem ter uma liderança que una e não distancie, que mostre o que temos em comum mais do que aquilo que nos separa, e para que tenhamos uma estratégia muito clara, e também um maior apoio político a estes temas.

Outra coisa interessante, e essa estaria agora mais consciente, sinto que nas minhas funções anteriores sempre fui um bocadinho tradutora, onde traduzia um bocadinho os negócios para a tecnologia e a tecnologia para os negócios, e aqui acrescento a essa tradução, que já não é fácil, a tradução público-privado, que é algo muito interessante.

Sinto que há uma grande desconfiança mútua e, portanto, quando queremos fazer pontes e juntar para criar projetos que só com uma vertente nunca vão funcionar, temos que criar uma base muito forte de confiança para que estes atores possam construir e criar projetos conjuntos e duradouros.

E quais têm sido as principais dificuldades nessa ponte entre o público e o privado?

O principal bloqueio é precisamente criar ou construir. E sinto isso em quase todas as relações que criamos. O território da confiança e fazer essa construção, ou seja, ir buscar aquilo que é comum, aquilo que ambos têm de interesse e de objetivo final, mais do que aquilo que cada um tem que os distancie.

Sente que o interesse e o acreditar no digital é igual nos dois lados da equação ou ainda encontra algumas desconfianças?

Há desconfianças, sim. Mas acho que a pandemia trouxe uma coisa que ajudou, que foi tirarmos uma barreira de desconfiança que a situação em si excluiu. Prova disso é o tema do teletrabalho, que até quem nem entendia o conceito começou a perceber, pela própria vivência, que se calhar é possível e nem é mau, embora tenha vantagens e desvantagens. Mas o tema do teletrabalho ampliado traz muitos outros, porque as pessoas tiveram de se habituar às ferramentas digitais, à colaboração digital, às compras online, e quando começamos a introduzir estas coisas no nosso dia a dia é mais fácil as pessoas começarem a fazer visão disso para o seu trabalho e negócio.

Mas, quer no público, quer no privado, a falta de literacia digital continua a ser um problema.

A capacitação e a formação são temas críticos. Agora que estou nestas funções já há algum tempo, digo os números, mas cada vez que os digo eles chocam-me. No início da pandemia, 22% da nossa população não tinha acesso à internet e não tinha qualquer participação digital. Esse número agora passou para 18%, e temos a ambição de reduzi-lo – tal como aconteceu com a alfabetização em 50 anos – em cinco anos. Não podemos esquecer que há cerca de 40 anos tínhamos 25% de analfabetos. Mas se este número já me choca, e é muito importante trabalhá-lo, há outro que me choca mais, que é termos apenas 52% da população ativa com competências digitais mínimas, básicas. O que significa que 48% nem competências básicas tem.

Isto significa que num mundo em que o digital está na nossa vida, na nossa interação como cidadãos, nas nossas empresas é um tema absolutamente crítico em qualquer projeto. Portanto, quando pensamos num projeto de transformação digital em qualquer organismo, em qualquer entidade, que não comece com uma identificação do estado de capacitação do nosso território, já não estamos a ir por um bom caminho.

O PRR ajudará também a mitigar esse desafio…

Temos um programa muito ambicioso – a academia do Portugal Digital –, que é um dos projetos do PRR. Espero que, no início do próximo ano, tenhamos como base da academia do Portugal Digital uma ferramenta de diagnóstico para as competências digitais básicas, para que as pessoas possam perceber o seu nível de literacia, e o que podem fazer. Ou seja, damos recomendações de percursos para o que poderão fazer para evoluir a sua capacitação.

Nesta área, especificamente da capacitação digital, e com base nos números que referiu, como é que nos comparamos com os congéneres europeus?

Há um índice - o DESI - que mede o nível de digitalização das economias, e o seu processo de constituição é muito interessante, e composto por cinco variáveis: conetividade, capital humano, utilização dos serviços de internet, integração do digital nas empresas, e serviços públicos digitais. No índice global estamos mais ou menos a meio da tabela, no 19.º lugar. Onde estamos melhores é, sem dúvida, na conetividade e nos serviços públicos digitais, e onde estamos pior é no capital humano, na capacitação das pessoas e na utilização dos serviços de internet que, como é óbvio, estão muito correlacionados. O relatório de 2020 está prestes a ser concluído e estamos muito expectantes.

Esta acaba por ser uma ferramenta de competitividade?

É uma ferramenta de competitividade internacional do nosso país porque a atração de investimento, por exemplo, mede-se exatamente nestas coisas. Não podemos, por isso, trabalhar com estes temas de ânimo leve. É um trabalho hercúleo acompanhar todos estes índices, implementar as medidas para ter um impacto real na economia e, ao mesmo tempo, garantir que estamos a ter a visibilidade externa para aquilo que estamos a fazer.

É um trabalho contínuo, e de todos…

Sim. Como pessoas, se hoje em dia não fizermos uma formação ou uma atualização do nosso conhecimento nestas áreas, e não recomendarmos à nossa equipa que o faça, estamos a falhar com o país e connosco próprios. E, sinceramente, daqui a uns meses, especialmente nestas áreas da formação, não consigo admitir ouvir alguém dizer que não tem recursos ou dinheiro, porque é só mesmo estar alheado do mundo e não querer fazer o seu caminho. Agora, isto exige visão dos nossos líderes, e é por isso que uma das medidas que também tenho no pilar da capacitação é a do Líder Mais Digital. E, muito importante, no programa Líder Mais Digital, é a existência de uma componente fortíssima de soft skills, de capacidade de gestão da mudança e dessa transição, e que não é tecnológico, mas que é absolutamente fundamental para que um líder possa fazer o seu roadmap para a transição digital.

O tema da capacitação é um dos pilares desta estrutura de missão do Portugal Digital e tem sido o que tem destacado como o mais prioritário. Quais são os projetos que estão a ser feitos, quais é que vão ser lançados, o que é que está a andar?

Temos três pilares fundamentais que são a capacitação das pessoas, das empresas e do Estado. Nesta última temos um papel de orquestrador, mas também de muita ligação com os outros organismos e com a AMA (Agência para a Modernização Administrativa). Nesse aspeto somos facilitadores e quase que indutores da transformação, nomeadamente, na estratégia de cloud.

Relativamente ao Eu sou Digital, e a propósito do número de pessoas que estão excluídas da participação digital, começámos há um ano a preparar um projeto que viu agora a luz do dia, e que consiste em conseguir, nos próximos três anos, trazer um milhão de pessoas para o mundo digital. E vamos fazê-lo através de uma coisa que também é maravilhosa do ponto de vista social, que é juntar as gerações mais velhas com as gerações mais novas. Ou seja, há um grupo de mentores voluntários, cerca de 30 mil, que vão formar todos aqueles que na plataforma Eu sou Digital se identifiquem como querendo ter esta capacitação. E, claro que não têm que ir online. Há um número 800 para o qual podem ligar e pedir esse apoio, e depois as redes de proximidade ajudam.

Depois, há outra carência enorme que é a requalificação dos nossos profissionais. E esta é uma oportunidade para trazer pessoas, com melhores salários, para um setor pujante e o Upskill é isso mesmo. Primeiro, temos empresas que dizem de que recursos precisam e em que áreas. Portanto, estamos a formar o que precisam para a empregabilidade. E, mais que isso, depois deste processo formativo de nove meses – seis meses de formação nos politécnicos ou em institutos de ensino superior e três meses de on the job nas empresas – as pessoas são recrutadas com um salário mínimo de 1.200 euros. Temos neste momento quase a totalidade dos formandos já empregados e o feedback que recebo das empresas é que estas pessoas têm uma vontade, uma dedicação e uma experiência que, não sendo tecnológica, é de mundo, é de empresa, e o valor que trazem para as equipas tem sido espetacular.

Vão avançar para uma segunda edição?

Sim. Provavelmente ainda em outubro teremos o lançamento da segunda edição. Relembro que o Upskill foi lançado durante a pandemia, as formações decorreram com as condicionantes que existiam, e as contratações também foram feitas neste período pandémico. Por isso, é uma coisa de que nos orgulhamos muitíssimo.

Depois, temos outros dois programas que foram pilotos, mas que agora vão ter um crescimento brutal, que são o Emprego Mais Digital, em que o grande objetivo é formar ativos empregados, e o Jovem Mais Digital, que visa criar um catálogo com as competências digitais e que, por isso, está muito formatado para áreas que não existiam como, por exemplo, analytics, programação, CRM, comércio digital, marketing digital, entre outras. E são esses blocos que estão a ser utilizados, quer no Jovem Mais Digital, quer no Emprego Mais Digital.

Aqui estamos a falar de quantas pessoas formadas?

Os números que tínhamos para o emprego das várias associações até 2021 eram de quase 40 mil formandos. Estamos com uma taxa de execução um bocadinho abaixo, também por causa da pandemia, mas a crescer. Está a faltar-nos chegar às empresas e a elas aderirem, e é isto que temos falado com as associações empresariais, porque o programa está lá, o investimento está lá. No PRR, este número vai aumentar em termos de ambição, para cerca de 200 mil. Ou seja, nos próximos quatro anos vamos ter 200 mil pessoas neste processo do Emprego Mais Digital, 50 mil das quais como líderes.

E em relação aos outros pilares como é que as coisas estão a andar?

O pilar dois, o das empresas, terá um reforço enorme do PRR, porque grande parte é orientado para as pequenas e médias empresas, especialmente no capítulo da transição digital. Mais uma vez o que fizemos, e posso dar dois exemplos, quer as testbeds, quer os Digital Innovation Hubs (DIH) eram programas que já tínhamos, mas vamos agora dar- -lhes substância e financiamento. Por exemplo, tínhamos a vontade de ter um DIH por setor de atividade porque acreditamos que esta transformação não se faz a escolher três ou quatro atividades onde nós vamos ser espetaculares, temos de levar toda a economia, não podemos deixar ninguém para trás. Assim, teremos 16 DIH nacionais e, destes, vamos escolher seis ou sete que terão reforço e financiamento internacional.

Um outro tema que também já estava no plano é a rede nacional de testbeds, agora prevista no PRR. Aqui há uma complexidade grande porque o objetivo é criar 30 testbeds, que depois envolvam cerca de 7.200 empresas, e queremos criar uma infraestrutura que crie as condições para testes e desenvolvimento de novos produtos e serviços.

Outra área importante são as Zonas Livres Tecnológicas (ZLT), que já estão aprovadas. Aqui, o conceito é haver uma sandbox regulatória, ou seja, no modelo de smart legislation permitir testar áreas onde a legislação e a regulamentação podiam limitar a inovação. A ANI (Agência Nacional para a Inovação) tem aqui um papel fundamental como entidade de testes, e já temos vários interessados em ser as primeiras ZLT. Vamos iniciar agora o processo de análise dessas candidaturas. O processo legislativo, que demorou este ano e meio, também está a decorrer.

Disse há uns meses que Portugal poderia ser um testbed da Europa. Como é que podemos ter essa ambição?

Acho que pela nossa dimensão, e por isso é que não podemos perder esta oportunidade. Somos um país que, pela dimensão, é mais fácil juntarmos os ecossistemas. Conseguimos juntar a ciência, a economia e a administração pública com um conjunto de telefonemas a pessoas chave e fazemo- lo rapidamente, até mesmo com as grandes empresas ou empresas de média dimensão. Acredito que com este espírito coletivo podemos mesmo diferenciar-nos na Europa e por dois motivos: inspirá-los a fazerem modelos parecidos connosco e, em alguns casos, haver inclusivamente algumas empresas que se mobilizem por estas transformações e que façam investimento em Portugal porque sentem que têm o território fértil para poder inovar e testar cadeias de valores diferentes, ou trazerem os seus valores e ecossistemas para cá, se esses ainda não existirem.

E como está a estratégia da cloud para o setor público?

Conseguimos fazer a publicação da estratégia da cloud para a administração pública e essa já está pública. Foram, entretanto, criados cinco grupos de trabalho, um dos quais para a disponibilização de frameworks de adoção de serviços cloud e de templates de peças contratuais. Existe ainda um outro que é a alteração de normas para ser mais eficiente contratar serviços cloud, e aqui a grande discussão que todos os prestadores de serviços têm e, nomeadamente na administração pública, é que a cloud seja vista como um serviço e não um problema, que possa ser uma opção, e que haja esta alteração. Estes dois grupos de trabalho estão muitíssimo avançados, e espero que o resultado dos trabalhos seja visto muito rapidamente porque só ter este público já permite quebrar muitas barreiras. O terceiro grupo, que é um bocadinho mais complexo, é a disponibilização de um acordo quadro pois, pelas caraterísticas dos serviços cloud, não pode ser um acordo quadro tradicional porque não permitirá ter a flexibilidade e a maneabilidade que um serviço cloud precisa. Estamos a fazer esse processo para garantir que conseguimos ter um sistema de contratação.

Em paralelo temos dois grupos de trabalho em que um tem a ver com a qualificação de recursos humanos, e um outro que tem a ver com o modelo de governance e a monitorização da implementação destas estratégias dentro da Administração Pública.

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